quarta-feira, 3 de março de 2010

Multidão numa ilha




Somos cinco mas representamos milhões.

Em cima desta pedra - ilha na maré cheia – situamo-nos entre duas perspectivas visuais, paisagísticas e realmente díspares. De um lado o horizonte aberto e livre, do outro lado o quintal-prisão semeado de edifícios altos.
Virados para o oceano enxergamos toda a felicidade ao alcance da nossa imaginação e/ou do nosso desejo.
Dirigindo os nossos olhares para terra sentimo-nos espezinhados pelo cimento-dinheiro invasor de um espaço anteriormente livre.
Cada um de nós reconhece-se como um ligado a milhões nas mesmas circunstâncias.
Aqui e agora nesta pedra somos cinco.
Para nós é ténue, quase inexistente, a linha de separação, lá bem longe, entre o mar e o céu. Para nós o mar abre-nos caminhos para um futuro melhor.
Para os habitantes dos blocos de cimento achamos esta mesma linha tornar-se bem nítida.
Sim, não nos aflora a mínima dúvida. Eles necessitam de marcar territórios, de marcar casas, de marcar automóveis, de marcar escolas, de marcar vestuário. Eles precisam de marcas para se demarcarem dos outros. Por isso não interessa o montante investido em produtos de “marca”. Para eles o verbo é investir na proporção directa de vermos, nós – os da ilha – o verbo gastar empobrecer-nos.
E assim vai ficando tudo demarcado. As marcas do luxo e do poder restam demarcadas pelos condomínios fechados.
Os nossos gritos de desespero vislumbram a esperança de salvação pela ausência de muros, de portões e até de portas nos caixotes de pedra alinhados sob as designações de marca “musseque” ou marca “favela”.

Nos intervalos de trabalho ou na sua ausência, em vez de subjugar-nos aos entretenimentos embriagantes, corremos até esta pedra. Sempre na ânsia sonhada dela se desenraizar e ir à garra por aí fora. Rumo ao infinito, rumo ao céu, rumo a uma vida, seja ela qual for, de liberdade.
Quando a maré vazia atinge o seu apogeu, arrastamo-nos em direcção ao pedaço de cidade superiormente designada “civilização”.
Somos cinco aqui, talvez milhões em todo o planeta Terra.

Francisco de Pina Queiroz

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